No limiar dos infernos: "Almost holy"
documentário sobre pastor ucraniano revela o heroísmo dos homens comuns e o poder da esperança nos momentos de crise
“Nós sonhamos com tempos bons, mas devemos nos preparar para tempos ruins”.
Gennadiy Mokhnenko
“Todos os dias, todas as horas ofereciam a oportunidade de tomar uma decisão, uma decisão que determinaria se você iria ou não se submeter àqueles poderes que ameaçavam te roubar do teu verdadeiro eu, da tua liberdade interior”.
Viktor Frankl
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Quando a vida é confortável, certas dimensões da realidade parecem estar bem distantes do nosso cotidiano. Sabemos que elas existem, mas geralmente ficamos indiferentes a elas. Refiro-me às experiências extremas, que podem ameaçar o desenvolvimento orgânico da vida humana.
O filme Almost Holy1, de Steve Hoover, coloca-nos em contato com essas dimensões da realidade, com as situações em que se concretiza, de maneira acentuada, a famosa frase de Guimarães Rosa/Virginia Woolf, segundo a qual “viver é muito perigoso”.
Durante dois anos, Hoover acompanhou o trabalho do pastor Gennadiy Mokhnenko nas ruas de Mariupol, na Ucrânia. Gennadiy resgata órfãos viciados em drogas e os leva para o seu centro de reabilitação chamado Peregrinos.
Desde a sua fundação, no ano de 2000, o Peregrinos resgatou mais de 3000 viciados e os reintegrou a suas famílias biológicas ou os encaminhou aos orfanatos do Estado.2
Falando assim, quando tudo já virou estatística, parece um trabalho fácil; toda a complexidade moral e prática dos feitos de Gennadiy torna-se uma simples frase que não permite que vislumbremos a concretude e a importância real de suas ações.
Contudo, o seu trabalho é de um valor inestimável: quando a sociedade demonstra as falhas inerentes à coletividade caótica, aparece um indivíduo motivado para mostrar que aquelas falhas são remediáveis, que basta ter coragem e decisão suficientes para solucionar certos problemas.
A realidade das crianças adotadas por Gennadyi é brutal. Geralmente são órfãos cujos pais também são viciados em drogas ou alcoólatras irrecuperáveis que já desistiram de viver uma vida normal. Violência, prostituição, abuso sexual e doenças infecciosas fatais são elementos comuns do seu cotidiano. Mas o problema vai além disso.
Na Ucrânia pós dissolução da União Soviética, parece haver um fantasma que faz as pessoas desistirem de viver uma vida plena de sentido. Há um terror psicológico que cria uma verdadeira “guerra dentro dos espíritos”. E é importante rastreá-lo. Não apenas porque a sua presença ilustra o velho combate entre o bem e o mal, mas também para que não caiamos no pensamento ressentido segundo o qual indivíduos conscientes são meras “vítimas da sociedade”.
Escolha e autotranscendência
Em 1959, o psiquiatra austríaco Viktor Emil Frankl, sobrevivente de quatro campos de concentração nazistas, publicou o livro Em busca de sentido, que viria a se tornar um dos trabalhos mais influentes do século XX.3 Nesse livro, Frankl relata as suas experiências no campo de concentração e explica o desenvolvimento da logoterapia, terapia criada por ele, cujo principal preceito é o de que “o homem pode suportar qualquer coisa na vida, menos a falta de sentido”.
Quando o indivíduo deixa de ver sentido em suas ações, ele simplesmente desiste de viver. E aí, ao encontrar-se em condições adversas à sua sobrevivência física, ele acaba por sucumbir.
Se, ao contrário, há algo que lhe motiva a continuar vivo; se há, no mundo, uma tarefa que apenas ele, em sua individualidade, pode cumprir (realizar um trabalho artístico, amar uma pessoa, lutar pelo seu país), então ele conseguirá sobreviver mesmo nas condições mais adversas.
Para isso, contudo, ele tem de atingir um estado de autotranscendência, isto é, ele tem de parar de se indagar a respeito das coisas que ele espera da vida e passar a se perguntar o que a vida espera dele.
Para Frankl, a palavra “vida” tinha uma acepção muito precisa. Quando dizemos “vida”, não estamos nos referindo a algo vago ou abstrato, mas a situações concretas e facilmente identificáveis. Tendo passado por uma das mais extremas formas de sofrimento a que o homem já submeteu outros homens, Frankl chegou à conclusão de que o vácuo existencial dos tempos modernos deve-se à falta de decisão de indivíduos que esperam a todo momento que outros lhes digam o que fazer, indivíduos que se abstêm de tomar decisões responsáveis:
“As experiências no campo [de concentração] demonstram que o homem de fato tem escolha. O homem pode preservar um vestígio de liberdade espiritual, de independência de mente, mesmo nas condições mais terríveis de estresse físico e psicológico.”4
Assim, Gennadiy encarna as três possíveis fontes de sentido apontadas por Frankl: o trabalho, o amor e a coragem nos tempos difíceis. Ele sabe qual é o seu papel dentro mundo, conhece o sentido de cada uma de suas ações e conhece as consequências que sua abstenção poderia causar.
Pai adotivo de trinta jovens e crianças, ele reconhece o sentido literal de sua vida, a tarefa que só ele poderia realizar: “Infelizmente nossos pais não souberam ser homens. Nós não adotamos essas crianças porque queremos, e sim porque se não o fizéssemos, ninguém mais o faria.”
Embora tenha se tornado uma figura pública de alguma projeção, o seu trabalho não é uma busca por fama nem por dinheiro; as habilidades retóricas e manuais que ele teve de adquirir (a sua “presença de palco”) são instrumentos essenciais nas circunstâncias específicas com as quais ele se depara. Ele sabe que precisa convencer as pessoas (que querem viver normalmente, mas não conseguem) de que elas precisam fazer escolhas. Por isso ele não hesita em exortar crianças de cinco anos a tomar uma decisão definitiva para as suas vidas.
Em uma filmagem feita em uma das incursões noturnas de resgate, Gennadiy diz a Vova, um dos jovens que fugira e reincidira no uso de drogas: “Você vai pagar com a sua vida. A não ser que mude o seu destino. Se não, ela vai cobrar seu preço, Vova.” Assim, o seu papel é também o de incitar às pessoas a tomar uma decisão responsável para com a vida.
Circunstância e liberdade de consciência
Numa Ucrânia em constante conflito com a Rússia, cenário de contínuas crises políticas e guerras, Gennadiy faz um exame de consciência e diagnostica, de certa forma, o fantasma psicológico (e simbólico) que lhe aterroriza:
“Lênin. Lênin em todo lugar. Cada cidade, cada vila, na praça central, temos um monumento a Lênin. Inacreditável. E o maior dos problemas é que temos Lênin aqui [apontando pra cabeça]. Temos Lênin dentro da mente, dentro da alma. A União Soviética foi destruída, mas aqui [na cabeça] está viva para muitas, muitas pessoas. Para mim também, um pouco. Eu odeio o sistema soviético.”
Mas, a despeito de qualquer influência externa, ele não se entrega. A vida na Ucrânia pode ser difícil, mas Gennadiy aceita sua própria circunstância com uma responsabilidade assombrosa.
Ele poderia ter desistido da vida (ele conta que, quando era criança, ficava extremamente aliviado quando chegava em casa e, ao encontrar seus pais desmaiados por causa da bebida, tomava-lhes o pulso e assegurava que ainda estavam respirando), mas preferiu considerar os problemas alheios como seus próprios problemas.
Gennadiy acredita que as pessoas precisam viver uma vida normal: que precisam ter amigos, precisam ser amadas, ter um trabalho digno, etc. Quando isso não pode ser assegurado pelas “instâncias superiores” da sociedade, ou ainda, quando essas instâncias colaboram com os fatores que tornam aquelas condições insustentáveis, ele decide tornar-se responsável pelos problemas alheios. Sente que é sua missão resolvê-los.
Sabendo que “viver é muito perigoso”, ele não se demonstra um otimista irresponsável. Ao contrário, diz que devemos nos preparar para tempos ruins. Essa preparação diz respeito à preservação da liberdade de consciência, a última liberdade verdadeira, a que motivará a atitude positiva dos homens e os privará do desespero quando tudo for sombrio.
Segundo Frankl, “mesmo o pior dos loucos pode transcender o mal ou a insanidade fazendo escolhas responsáveis.” De modo que, quando os tempos são ruins, “depende de cada um dos homens a escolha de fazer o seu melhor para que tudo não piore.” Ninguém pode dizer que Gennadiy não cumpriu a sua missão.
Crocodilo Gennadiy
O filme faz uma comparação entre o Gennadiy real e o crocodilo Gennadiy, personagem de um desenho russo muito famoso na Ucrânia. Como o pastor, o crocodilo ajuda as crianças e ensina-lhes o amor e a responsabilidade. O próprio Gennadiy real adota o codinome “Pastor Crocodilo”, pois sente que é representado nos valores do desenho.
Como o crocodilo do desenho, Gennadyi tem de realizar ações práticas para resolver os problemas das crianças e dos jovens: ele não apenas os adota e lhes dá uma família; quando necessário, ele sai às ruas, como um vigilante, combatendo os responsáveis pelo tráfico de drogas ou pelos abusos sexuais. Além disso, Gennadyi também intimida as autoridades que se abstém de resolver os problemas do seu país e organiza movimentos para protestar contra o tráfico de drogas e as mortes por ele provocadas.

O estágio de força espiritual necessário para cumprir essas tarefas não é assim tão facilmente atingido. Gennadiy não depende apenas de uma propensão pessoal para fazer o bem, de uma simples identificação com os bons valores.
O comprometimento verdadeiro com os valores nasce do esforço. E, em certa medida, de um esforço intelectual. Gennadiy tem uma base espiritual forte, formada pela religião e pela leitura dos clássicos russos. Em determinado momento, lendo um trecho de uma edição de Os Irmãos Karamázov toda sublinhada, ele declara orgulhoso: “Os clássicos russos foram a melhor influência na minha vida. Isto construiu minha alma. Construiu meu entendimento. Isto construiu meu mundo, minha vida.”
Viktor Frankl também enxerga a riqueza da vida interior como a fonte da maior resiliência humana, pois foi à profundidade da vida espiritual que ele atribuiu a origem da resistência dentro dos campos de concentração nazistas:
“Apesar de todo o esforço físico e da primitividade mental da vida num campo de concentração, era possível aprofundar a vida espiritual. As pessoas sensíveis, habituadas a uma vida intelectual rica, podem ter sofrido muitas dores (geralmente elas apresentavam uma compleição delicada), mas os danos ao seu eu interior eram menores. Elas eram capazes de se refugiar do ambiente terrível que lhes circundava em uma vida de riquezas interiores e de liberdade espiritual.”
Essa riqueza interior é também fruto da experiência e do sofrimento reais acumulados. Gennadiy se diz forte, poderoso, um herói de verdade, e sabe que o sentido da sua vida exige que assim ele permaneça, mas ele não é imbatível. Com a expansão soviética no território ucraniano, ele parece ter ficado desiludido, como se todo o seu esforço não valesse nada frente à uma conjuntura cujos problemas ele não pode resolver. Contudo, o sentido de sua vida está sendo cumprido, e qualquer sofrimento só poderá acumular o seu tesouro de realidades.
A história de Gennadiy é verdadeiramente inspiradora. No geral, a linguagem do doc. de Hoover é genérica, como acontece com a maioria dos documentários produzidos hoje em dia, mas a sua grande virtude está no testemunho. Tornamo-nos mais humanos quando sabemos que há no mundo pessoas que praticam a mais alta forma do amor: a dedicação total ao ser alheio, a caridade, o sacrifício, a autotranscêndencia.
A história de Gennadiy faz com que reconsideremos cada instante das nossas vidas, pois ela é um antídoto contra a banalização da tragédia na qual vivemos imersos.
Se para alguns as tragédias configuram-se apenas como “mais umas imagens”, combustível de uma indignação instantânea e passageira, para outras pessoas elas constituem a verdadeira estrutura da realidade. Pessoas de carne e osso, que vivem no limiar dos infernos. Pessoas que, como conta Viktor Frankl, tendo uma vez compreendido o que a vida esperava delas, seriam capazes de “entrar numa câmara de gás com a cabeça erguida, recitando o Shemá Israel e o Pai-Nosso”.
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Este texto foi publicado originalmente em 2016. Achei pertinente republicá-lo aqui nos Pontos de Vista, agora em 2023, em face da tragédia do Rio Grande do Sul, pois, como na história de Gennadiy, a atual tragédia brasileira demonstrou a força dos indivíduos frente à crise institucional e a importância da esperança nos momentos mais difíceis.
Logicamente, estes dados estão desatualizados. Hoje, o número de jovens atendidos pelo Peregrinos é muito maior. Além disso, Gennadiy e sua equipe trabalharam incansavelmente nos períodos de guerra — intensificados nos anos posteriores ao documentário aqui analisado — resgatando as pessoas das áreas de risco e ajudando a outras que ficaram em abrigos durante os conflitos.
Se o leitor ainda não está familiarizado com a vida ou a obra de Frankl, sugiro assistir ao documentário Além da liberdade, disponível no Youtube.