Neste 19 de março, dia que a igreja católica dedica a São José, venho quebrar “o silêncio” momentâneo desta publicação para falar, justamente, do silêncio.
Porque, dentre as várias virtudes atribuídas ao pai adotivo de Cristo está a do silêncio.
Não que o silêncio seja uma virtude em si — embora, no mundo histérico em que vivemos hoje, ele até possa ser assim considerado —, mas o silêncio de São José simboliza a sua prontidão: sua disposição para agir imediatamente, para fazer o que é preciso ser feito sem reclamar.
No belíssimo livro que dedicou ao santo, Michel Gasnier diz que São José “ficava em silêncio para deixar que Deus falasse com ele”.
Por isso, longe de ser um indício de certa passividade frente à vida, o silêncio de São José demonstra o seu ânimo:
A [submissão de São José] não fraquejou nunca, nunca regateou, nunca discutiu, nunca levantou objeções, nunca pediu explicações. Não se revoltou, não se queixou de que aparentemente o tratassem sem consideração e só lhe enviassem as luzes necessárias no último momento. Não houve nele nenhuma lentidão à hora de entregar-se, e cumpriu o seu dever até o fim sem desanimar por nada.1
Eis uma postura realmente estranha para o mundo em que vivemos hoje. Uma postura baseada no silêncio e na humildade, mas, ao mesmo tempo, na ação e na coragem.
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Há um tempo escrevi o seguinte poema:
Não sei até que ponto o texto é suficientemente claro — e não sei se deveria tentar explicá-lo —, mas o que eu pretendi dizer com esse poema foi que há um tipo de percepção que funciona como se fosse uma revelação.
Quando tal percepção ocorre, sentimos uma espécie de plenitude. É como se, subitamente, fôssemos tocados pela graça divina.
Em outro poema, presente no meu livro Paisagem Absoluta2, também tentei descrever esse tipo de percepção com os seguintes versos:
emana dessa voz a luz primeira
de quando uma verdade se revela.
Verdade com que a mente se depara
e sem explicação passa a entendê-la.
Alguns autores chamaram isso de epifania.
E, ao evocar tal termo, peço licença para mais uma citação, dessa vez do poeta Bruno Tolentino, porque a sua descrição de epifania merece ser conhecida:
Às vezes temos percepções espantosas de que a realidade é dom de Deus. São momentos que chamo de epifanias — na verdade, simplesmente uso o termo para essa súbita aparição do ser em sua plenitude.
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É algo muito difícil de explicar, mas recentemente, por exemplo, eu estava andando [numa] rua, entre um ônibus e duas árvores completamente empoeiradas, e subitamente aquilo tudo me causou um grande espanto.
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Foi um maravilhamento que não se explicava nem justificava de maneira alguma, mas é como se aquele enigma que você é o obrigasse a espantar-se e ficar profundamente emocionado.
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É essa dimensão metafísica da vida que transfigura tudo. Temos a impressão que tudo existe apenas porque Deus está respirando e, se Ele parasse de respirar, tudo se desfaria em poeira.
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Na verdade, tudo é poeira mesmo, mas, nesses momentos, como que numa respiração de Deus, todo aquele pó se transforma em brilho — que às vezes é percebido, às vezes não. Isso é o momento de epifania."3
Enfim, todas essas citações são para dizer que, quando temos a experiência de uma epifania, nenhuma palavra é necessária. É um momento que pode ser compreendido, mas que não pode ser explicado.
Por isso as palavras verdadeiras almejam o silêncio: se falamos, se tentamos descrever algo com verdade, é porque esperamos pelo dia em que poderemos nos calar em plenitude, quando “ficaremos em silêncio para que Deus possa falar conosco”.
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Há um tipo de linguagem em que é possível “surpreender” o silêncio que existe nela. Não porque essa linguagem seja “inexpressiva”, mas porque ela carrega consigo os vestígios daqueles momentos de epifania. Carrega consigo o silêncio da contemplação, da gestação, do pensamento.
É uma linguagem quase extinta.
A julgar pelo jornalismo, pelas redes sociais, pela publicidade e pelas expressões orais — para não falar da literatura, da sub-literatura, de tudo o que hoje aparece sob esse prestigioso rótulo, salvo as honrosas e óbvias exceções —, parece que o mundo está cada vez mais histérico.
Porque a linguagem virou uma coisa pornográfica: não se fala ou se escreve para “revelar”, mas, exclusivamente, para “chamar a atenção”, para “perturbar”, para “vender”, para “provocar”, para “convencer”. Ou seja: é um mundo carente de epifanias (e por isso muito doente), pois imerso em um ruído tão perturbador que não permite que a “voz de Deus” seja ouvida.
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Embora essa reflexão pareça paradoxal, não é difícil de compreender que existe uma espécie de eloquência no silêncio.
O silêncio que, na belíssima canção As palavras ausentes, do grupo português Madredeus, aparece como um substantivo.
O silêncio que não é uma ausência, mas uma presença.
A presença.
Michel Gasnier. José, o silencioso. 2ª ed. São Paulo: Quadrante (p. 178).
É possível adquirir o livro neste link.
Bruno Tolentino. Do enigma ao mistério. Disponível aqui.