"Cry Macho: o caminho da redenção", de Clint Eastwood
por que o último filme de Eastwood é um dos mais belos de sua filmografia
Produzido durante a pandemia em 2020, Cry Macho foi anunciado como um dos filmes mais “promissores” do ano posterior. Era o retorno de Clint Eastwood ao western — gênero que o transformou numa lenda do cinema —, a consolidação de um projeto alimentado por mais de duas décadas.
No entanto, o filme não foi bem nas bilheterias; seu faturamento mundial não cobriu as despesas de produção e, sob a nova política instalada por David Zaslav na Warner, houve rumores de que o estúdio encerraria a sua parceria de 50 anos com Eastwood.
Cito tais fatos exteriores ao filme porque eles são muito significativos no que diz respeito à sua recepção pela crítica, pelo público e pelo “sistema” como um todo. Embora a Warner não tenha encerrado a sua parceria com Eastwood, só o fato de tal encerramento ter sido cogitado já indica o estado atual do cinema, motivado pela seguinte mentalidade: os estúdios não pensam o fenômeno do cinema como uma arte industrializada, mas como mero produto.
A este respeito, é pertinente lembrar de uma entrevista que Woody Allen concedeu em 2005 ao jornalista Eric Lax. Allen, ele mesmo um dos últimos representantes do bom cinema americano, disse:
Esses homens de negócios dos Estados Unidos se acham mentalidades criativas, e são o oposto disso. Querem garantia de sucesso financeiro no cinema, e os sucessos financeiros que conseguem quase sempre são uma questão de sorte. Fazem uma porção de filmes. Alguns vão bem, a maioria não vai bem, e eles realmente acham que estão dando contribuições criativas enquanto não passam de obstáculos tolerados pelas pessoas criativas que não estão em posição de mandar todos para o inferno. Não sabem nada sobre escrever, nem sobre direção, ou atuação, e querem interferir.1
Essa fala é pertinente porque, ainda que seja absurda, a ideia de que a bilheteria de um filme é um indício de sua qualidade artística não é exclusiva dos produtores de cinema. Muitas vezes, essa mentalidade publicitária é compartilhada pelo público e acaba por se transformar em um critério de julgamento para os filmes. Assim, cria-se um círculo vicioso: a indústria dita o que “deve” ser feito e os cineastas aceitam a crise criativa imposta pela publicidade.
Nesse contexto, há muitos fatores que podem explicar a má recepção de Cry Macho (pandemia, quebra de expectativas do público, má vontade do estúdio, etc.), mas penso que a “contaminação” provocada por essa visão meramente publicitária do cinema explica a má compreensão do filme do ponto de vista de cada indivíduo, porque ele chegou a ser apontado como o pior trabalho de Eastwood — até mesmo por admiradores de longa data do cineasta.
De minha parte, ao contrário, penso que Cry Macho não é apenas um dos melhores filmes da presente década, mas um dos melhores filmes da obra inteira de Eastwood. Um filme no qual estão presentes todos os principais elementos do universo formal do cineasta e, além disso, no qual esses elementos foram depurados, sublimados e, ainda que de modo sutil, intensificados.
Da crônica da América à crônica do Homem
Cry Macho provocou um estranhamento no público porque, em certa medida, ele quebrou o fluxo temático que Eastwood vinha seguindo. Os últimos filmes do diretor ou tratavam de personagens e eventos importantes da história americana (Sniper Americano, Sully, Richard Jewell), ou criavam universos fictícios que abordavam conflitos e questões morais aparentemente mais complexos que os de Cry Macho: a imigração e a vida social entre diferentes grupos étnicos nos EUA (Gran Torino); a realização pessoal de uma atleta e a eutanásia (Menina de ouro); a injustiça e os mecanismos “alternativos” da justiça (Sobre meninos e lobos); o contato com os mortos (Além da vida), etc. Esses filmes não tinham o seu principal ponto de interesse nesses assuntos, mas, em cada um deles, os temas funcionavam como eixos norteadores.
Assim, quando comparamos Cry Macho a estes outros filmes, fica evidente que ele está em um “tom menor”. Não há aqui “grandes heróis” ou eventos extraordinários, não há uma narrativa complexa, nem dilemas morais que não estejam circunscritos à esfera individual. É uma história cujos principais conflitos se passam no interior do seu protagonista: Mike Milo [Eastwood], toureiro que abandonou as arenas depois de ter quebrado a coluna e que, depois de ter perdido a esposa e o filho em um acidente, afundou-se no alcoolismo e perdeu o ânimo necessário para continuar vivendo.
O enredo inicia no momento em que é rompido o último laço que Mike ainda mantinha com as pessoas à sua volta: o trabalho. No primeiro diálogo do filme, Mike é demitido de seu emprego em uma fazenda. Aí, completa-se o conjunto de condições que o marginalizam: a solidão, o alcoolismo, a velhice, a inatividade.
É nessas circunstâncias que, um ano mais tarde, ele recebe uma missão inusitada de Howard Polk [Dwight Yoakam], seu antigo empregador: ir até o México para “resgatar” Rafael [Eduardo Minett], o filho adolescente de Polk. Rafael vive uma situação abusiva sob a guarda de sua mãe; e embora Polk queira libertá-lo de tal situação, o seu principal objetivo é usar o menino como uma moeda de troca em um acordo financeiro. Mike desconhece tais intenções escusas e aceita a missão em nome da dívida que tem para com o antigo empregador.
Embora Mike seja bem idoso, Polk acredita que ele é a “pessoa certa” para realizar tal trabalho, pois ele tem o espírito de um verdadeiro cowboy. A partir daí, Mike inicia uma “jornada” parecida com outras que já vimos dentro da filmografia de Eastwood, principalmente em Honkytonk man, O Mundo Perfeito, Menina de ouro e Gran Torino — filmes nos quais um protagonista experiente tem o seu caminho cruzado com o de um jovem e então há uma troca de aprendizados entre eles.2
A diferença está no tom dramático que Eastwood imprime a Cry Macho. Aqui, não vemos tiroteios, lutas de boxe, assassinatos, guerras, tsunamis, sequestros, acidentes de avião, atentados terroristas, investigação policial, etc. — situações presentes em seus filmes anteriores mais recentes. Vemos momentos cotidianos, situações banais (um pouco à maneira de Honkytonk Man; ou, pensando em um exemplo mais próximo no tempo, à maneira de algumas cenas de Além da vida).
Cry Macho é um adágio. Na maior parte das cenas, os personagens estão reunidos em volta de uma mesa, compartilhando uma refeição, ou estão apenas sentados, conversando, contando as suas histórias uns para os outros.
Há nisso uma concentração formal e, de certa maneira, um refinamento. Penso que a cena do sacrifício em Gran Torino, quando Walter Kowalski recita a Ave, Maria enquanto tem o corpo cravejado de balas, é uma das cenas mais belas do cinema dos anos 2000, mas não posso deixar de notar que o martírio do personagem é uma opção mais “fácil” do ponto de vista dramático: um apelo a uma emoção mais intensa da parte do público.
Em Cry Macho, Eastwood abdica desse tipo de solução, concentrando o drama em cenas cuja ação não é necessariamente espetacular. Ele demonstra a compreensão de que o valor dramático de uma ação não está em sua excepcionalidade, mas na intensidade com a qual ela é vivida, independentemente da sua natureza. Ou ainda: a excepcionalidade de uma ação é construída pelo modo como esta ação é percebida e expressa pela câmera.
Assim, o que há de excepcional em Cry Macho, além do seu conteúdo emotivo propriamente dito, são duas características formais que transcendem a sua narrativa: o senso rítmico (que se expressa na interação entre a edição e a trilha sonora) e o senso imagético de Eastwood.
O realismo metafórico
Nos primeiros momentos do filme, ouvimos a canção Find a new home, de Mike Mancina, na voz de Will Banister. A canção em si tem uma beleza muito peculiar, mas o mais interessante é que a sua letra é uma síntese da narrativa que vamos acompanhar, da vida do protagonista Mike Milo e, por extensão, da história pessoal do próprio Clint Eastwood.
A letra começa assim: “I’ve made my share of mistakes / but I meant no wrong” [Cometi muitos erros / mas não tive má intenção]. A canção continua e, no momento em que aparece o verso “It’s never too late to find a new home” [nunca é tarde demais para encontrar um novo lar], há um corte para o olho de Mike/Eastwood refletido no retrovisor do carro que ele está dirigindo:
É apenas um pedaço do seu rosto, quase nem conseguimos ver os seus olhos, mas aí estão acumulados, concretamente, no corpo do próprio Eastwood, na face em que esses olhos estão agora afundados, mais de 90 anos de experiência de vida, com toda uma verdadeira e particular “cota” de erros.
Eastwood tem consciência do poder expressivo de seu corpo envelhecido. Quando consideramos a figura real do ator e diretor, o personagem adquire uma densidade muito maior, ampliando as possibilidades interpretativas do filme. Mike Milo é inseparável de Clint Eastwood.
Como fica explícito no título, a premissa de Cry Macho é a desmitificação da figura do cowboy por meio da exposição das fragilidades humanas escondidas sob os emblemas da coragem. Por isso faz todo sentido que o próprio Clint (que ajudou a consolidar a imagem cultural do cowboy na segunda metade do século XX) encarne esse novo símbolo de fragilidade.
Esse poder metafórico encarnado no corpo de Eastwood também está presente na materialidade do filme como um todo. Eastwood sempre foi um cineasta muito atento à concretude dos mundos fictícios; mas, na maioria dos seus filmes, a beleza imagética era ofuscada por outras qualidades mais facilmente perceptíveis.
Em Cry Macho, essa beleza está em evidência. O filme é construído por belas composições — e não daquela beleza meramente ilustrativa e gratuita dos filmes genéricos da atualidade: os planos aparecem bem articulados dentro da montagem, em consonância com a música de Mancina, e acumulam os instantes do filme com uma carga semântica que não está (e nem poderia estar) no seu “discurso”.
Observando essas composições, poderíamos situar Cry Macho na tradição pictórica do realismo metafórico, que tem o seu principal expoente no pintor americano Andrew Wyeth, o qual, segundo Richard Meryman
segue a tradição de séculos da pintura realista — Albrecht Dürer, Rembrandt, Thomas Eakins e Winslow Homer. Mas ele também está em sintonia com os artistas abstratos da contemporaneidade, que consideram a superfície da realidade como uma espécie de estática que esconde as verdades mais profundas. Nas suas pinturas mais importantes, as imagens luminosas criadas por Wyeth são austeras, discretas e misteriosas — fantasmas da realidade. Mas, pulsando sutilmente por trás dessas superfícies retraídas estão a violência e o ódio, o amor, a dor e o medo. À maneira dos abstracionistas, ele espera que as pessoas percebam as emoções que o atormentam e se identifiquem com elas.3
Para um público que esqueceu que as imagens são a matéria-prima do cinema, um público que trata essas imagens como meras ilustrações de uma história ou de uma narrativa, o realismo metafórico é incompreensível. Para esse público dessensibilizado, as imagens concretas já não têm nenhuma capacidade abstrativa porque elas foram colocadas previamente em um molde “hermenêutico”. Mas há muita abstração em Cry Macho, fruto da intenção — consciente ou inconsciente — do seu diretor.
À maneira de Wyeth, Eastwood também é um realista metafórico. E às vezes em estrito diálogo com o próprio Wyeth. Há vários exemplos desse diálogo em Cry Macho, mas citarei um em especial: quando Mike Milo deita-se no banco de uma capela dedicada à Nossa Senhora de Guadalupe para dormir depois de um dia exaustivo, Eastwood cria uma composição muito próxima à do quadro That Gentleman. A paleta de cores, a disposição dos elementos, a dinâmica das linhas, o modo de captação da luz — para não falar do próprio motivo — são características que remetem àquela pintura.
Mas, assim como acontece com as pinturas de Wyeth, o mais importante nas imagens de Eastwood é o que “está pulsando sob a sua superfície”: a metáfora. É aí que residem o “o ódio, o amor, a mágoa, o medo”, etc. E a riqueza dos outros elementos do filme pode confirmar essa percepção.
Testamento artístico
Há um simbolismo muito bonito nos nomes dos protagonistas de Cry Macho: Michael e Rafael, nomes de dois arcanjos. Santo Agostinho ensina que a palavra “anjo” (mensageiro) refere-se à atividade e não à substância de tais entes espirituais. Os anjos são aqueles que “portam” uma mensagem ou uma missão específica. Nas Sagradas Escrituras, eles se materializam por meio dessa missão ou dessa mensagem que carregam. É por isso que, ainda que o simbolismo dos nomes dos protagonistas seja involuntário, ele não deixa de ser significativo, pois é por meio de sua missão particular que Mike e Rafo (Michael e Rafael) mostrarão um para o outro a redenção que é possível encontrar em um mundo que, para eles, até então, antes de se conhecerem, era um “vale de lágrimas”.
Miguel = o que é como Deus. Obviamente, Mike Milo não é um “ser divino”, mas ele liberta Rafo de uma vida violenta e desesperadora, em que não havia nenhuma segurança. Nesse sentido, ele é providencial na vida de Rafo. O emissário da providência.
Na ligação estabelecida entre os diálogos e as canções que pontuam a narrativa, é significativo que o filme que inicia dizendo que “nunca é tarde demais para encontrar um novo lar”, referindo-se ao personagem idoso, encontre um contraponto quando o personagem jovem, ao conhecer uma vida completamente diferente da que levara até então, diz “este é o melhor lugar que já estive na minha vida”. Quando ele diz isso, o lugar em que está não tem nada de especial: é uma taverna quase abandonada, numa cidade esquecida no meio do deserto. Mas é ali que Rafael descobre uma possibilidade que vai além do “vale de lágrimas”.
Rafael = O que cura/restaura. Rafa = a cura/restauração. Se Rafo descobre novas possibilidades de existência por meio de Mike, Mike é quem acaba por descobrir a sua “nova casa” por meio da missão que lhe fora atribuída. Os infortúnios de Rafo — e a sua dor, a sua coragem, a sua esperança, sua ingenuidade — fazem com que Mike reconsidere a sua própria vida. É uma lição aprendida por meio da fragilidade, da “essência de cristal” de que falava Shakespeare. “Lição” que aparece de forma bem didática em Cry Macho, em uma cena que até contraria a lógica sintética do filme como um todo: quando, já quase no final, Mike faz um discurso intencionalmente “filosófico” a Rafo. Ele diz:
Vou te dizer uma coisa. Essa coisa de macho é superestimada. Pessoas tentando ser machos para mostrar que têm coragem. E é a única coisa que eles acabam fazendo. É como a vida. Você acha que tem todas as respostas. Então, à medida que envelhece, percebe que não tem nenhuma.
Esse discurso de Mike seria desnecessário se não estivesse articulado de modo concreto nas situações do filme. Ele não soa ridículo porque os momentos de ação extraordinária de Cry Macho são resolvidos por Eastwood de forma explicitamente cômica, de modo cartunesco, quase sempre pelo intermédio do galo de nome Macho.
Mais do que uma adaptação às condições de produção (inclusas aí as condições físicas do seu protagonista idoso), essa escolha artística funciona como uma poética. Ao mostrar as ações sob uma lógica cartunesca, desprezando a sua possível espetacularidade, Eastwood está dizendo que, para além dos conflitos físicos, há conflitos menos aparentes que podem ser muito mais difíceis de resolver, os quais, por isso mesmo, são muito mais importantes.
Já tínhamos visto algo parecido em Sniper Americano: Chris Kyle, vivido por Bradley Cooper, também era a personificação do cowboy; da força, da coragem, da perícia, da máxima eficiência, do heroísmo; mas, ao mesmo tempo, sua atuação na guerra do Iraque acabou por perturbar a sua alma, acabou por destruí-lo interiormente.4
Mike Milo, por sua vez, é um cowboy que não precisou ir à guerra para sofrer os seus traumas. Outras circunstâncias deram origem à sua guerra interior. E é por isso que o filme funciona como uma poética, quase como um testamento artístico: a maior parte das pessoas passará pela vida sem participar de uma guerra, de uma perseguição policial, de um tiroteio, de um sequestro e outros tipos de situações fisicamente extremas, mas todo mundo, inevitavelmente, sofrerá com a passagem do tempo, acumulará a sua “parcela de erros” e conhecerá a desilusão, o remorso, o luto e a morte.
Esses são os conflitos mais puramente humanos. Eastwood está dizendo que a coragem exigida pela vida é mais do que a coragem de colocá-la à prova: é a coragem de aceitar as provas que ela coloca — até mesmo a prova de perdoar a si mesmo, de aceitar a redenção quando ela se apresenta. Mike só decide se “levantar” novamente quando vê a sua fragilidade refletida no jovem Rafo, que lhe traz a “cura”.
Temos algo muito importante a aprender com Cry Macho: o cinema precisa abordar os dramas do ser humano com seriedade. Os conflitos, sua filosofia correspondente, não podem se resumir a frases de efeito pulverizadas no meio de imagens produzidas em MacBooks. O assalto aos sentidos; a linguagem publicitária; a emulação de cacoetes do cinema alternativo que supostamente deixam os filmes mais “artísticos”; o discurso ideológico apresentado da maneira mais pobre possível; nenhum desses subterfúgios são uma solução. Apenas uma atenção sincera para a vida humana pode produzir um drama digno de atenção. Clint Eastwood sabe disso. E é por isso que, aos 94 anos, ele continua sendo um dos poucos cineastas verdadeiramente importantes da atualidade.
Uma impressão na eternidade
Mencionei a densidade material, a fluidez da montagem, a beleza imagética, as nuances rítmicas, as conotações filosóficas, enfim, todos os elementos que demonstram o refinamento formal conquistado por Eastwood em Cry Macho.
De fato, essa é uma virtude que atravessa todo o filme por meio da intenção ordenadora e sintética de seu diretor. Por exemplo: é preciso muita maturidade formal para compreender (e acreditar) que um ato tão simples como o de uma mulher colocando a mão sobre a mão do homem pelo qual está apaixonada pode ter o mesmo poder emotivo que o de qualquer ação supostamente mais extraordinária.
Outro exemplo: temos pouquíssimas informações a respeito do passado de Mike; informações que aparecem rapidamente dentro de um diálogo ou de uma breve sequência de imagens. Mas ainda que sejam breves, tais sequências são suficientes para que consigamos construir esse passado — para que o compreendamos.
A sequência em que a câmera vai mostrando os objetos na parede da casa de Mike (troféus, medalhas e notícias de jornal) funciona como a primeira sequência de Janela Indiscreta, de Hitchcock: vemos todo um passado condensado num breve movimento de câmera.
Mais ainda: além da condensação do tempo, esses breves instantes também servem para caracterizar o personagem de Mike. Vemos a sua ascensão e a sua queda. E as imagens adquirem um poder metalinguístico inesperado pelo fato de serem fotos (ainda que manipuladas) do próprio Eastwood.
São escolhas como essa que fazem de Cry Macho uma obra-prima. Outro bom exemplo é a sequência que encerra o filme, a qual conjuga um uso metafórico da montagem e uma exploração inteligente da trilha sonora: depois de concluir a missão ministrada por Polk e levar Rafo até a fronteira dos Estados Unidos, Mike retorna ao México para ir viver com Marta [Natalia Traven] — dona de um pequeno estabelecimento onde ele e Rafo precisaram ficar escondidos por um tempo.
A despeito da idade avançada dos apaixonados, as cenas entre os dois personagens são repletas de ternura. Eastwood é um dos grandes diretores de cenas românticas da história do cinema. Várias cenas de Cry Macho — em especial essa última sequência — são uma prova disso. Depois da cena da fronteira, uma sobreposição nos leva diretamente para o restaurante de Marta:
O mais interessante nessa transição é que podemos ver o carro de Mike subindo a estrada e, ao mesmo tempo, parado na frente do restaurante, revelando, novamente, o poder de síntese do filme.
Logo após esse plano geral, uma nova transição nos colocará dentro do restaurante, onde encontraremos Mike dançando com Marta ao som da canção Sabor a mí, de Álvaro Carrillo, na versão de Eydie Gormé y Los Panchos.
Assim como a letra de Find a new home, a letra de Sabor a mí também é extremamente significativa neste contexto, porque ela não é apenas uma ilustração do que está acontecendo. Ela cria uma síntese e uma expansão do sentido do filme: nós já tínhamos visto uma cena muito parecida entre os dois personagens, dançando sob o som da mesma canção. Por que Eastwood decide repeti-la?
Porque a repetição da mesma situação, com os mesmos elementos formais, precedida das transições de montagem que anulam o tempo, coloca os dois amantes em uma outra dimensão: situa-os na eternidade; como acontece com os personagens de um famoso poema do poeta brasileiro Ruy Espinheira filho, quando o eu lírico diz: “Eis que dançando saímos / além da sala e do tempo / e dançando prosseguimos / sempre que sopra dezembro”.5 No final de Cry Macho, também somos colocados frente a uma dança que durará para sempre.
A anulação do tempo é reforçada pelo conteúdo da canção, que diz: “Pasaran mas de mil años, muchos mas / Yo no sé si tenga amor la eternidad / Pero allá, tal como aquí / En la boca llevaras sabor a mí” (Passarão mais de mil anos, muitos mais / e eu não sei se tem amor na eternidade / mas lá, assim como aqui / o meu sabor estará na tua boca). O lirismo é hiperbólico, mas é justamente a apropriação do exagero que torna o momento belo: eis um amor tão intenso que é capaz de deixar uma profunda impressão na eternidade.
A mesma canção traz a seguinte pergunta em um dos seus versos: “De mi vida doy lo bueno / Soy tan pobre, que otra cosa puedo dar?” (De minha vida dou o melhor / sou tão pobre, que outra coisa posso dar?) Pergunta meramente retórica, que nos diz que o mais memorável dos gestos é um gesto de caridade. Que as ações mais extraordinárias se passam dentro da nossa alma.
Ouça as canções citadas no texto:
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Eric Lax. Conversas Com Woody Allen. Cosac & Naify, 2009, p. 223.
Descontadas todas as diferenças óbvias (de estilo, de temática, de ambientação, etc.), Cry Macho tem muitas semelhanças com A Sapiência, obra-prima do cinema contemporâneo produzida por Eugene Green.
Richard Meryman. Andrew Wyeth: First Impressions. Harry N. Abrams, 1991, p 8-9.
Foi por este motivo que Eastwood declarou que Sniper Americano foi o seu principal filme feito contra a guerra.
Trata-se da “Canção da moça de dezembro”.