Retomando um projeto antigo — em meio às várias atribuições do meu trabalho regular e à produção das últimas aulas faltantes do curso Introdução à arte do cinema — retornei ao Youtube.
Minha ideia é fazer um canal de cinema que seja diferente de todos os outros. Que vá além das obviedades, do mero impressionismo e das pautas imediatistas.
É por isso que, ao lado de vídeos sobre filmes recém-lançados e assuntos atuais, manterei o projeto de abordar filmografias individuais de diretores que admiro. Cada mês será dedicado a um diretor. A começar em abril, o primeiro será Andrei Tarkovski, pois o diretor russo foi um dos primeiros que me fez ver o cinema “além das obviedades”.
Estou estudando para produzir os vídeos e, relendo os Diários de Tarkovski, deparei-me com inúmeros trechos que expressam sua visão única da arte, do cinema e da vida como um todo.
Decidi compartilhar alguns trechos aqui, pois eles demonstram o nível intelectual em que se movia o pensamento de Tarkovski. Se os seus filmes geralmente são vistos como obras que elevam a arte do cinema, é porque ele colocava, de fato, o seu ofício em um plano mais elevado de experiência. A ideia de que o cinema era uma “arte séria e difícil — uma arte que exige sacrifício individual” não era algo meramente retórico. Era uma ideia que foi vivida por Tarkovski em todas as suas consequências.
Vejamos alguns trechos dos seus Diários:
Para aprender a viver, deve-se pensar. Pois podemos estar errados e estragarmos tudo. Não se trata dos benefícios, mas da nossa vida — da vida da nossa intelligentsia, “do povo e da vida da arte”. Se a decadência da arte é óbvia e evidente, e a arte é a alma do povo, então podemos dizer que nosso povo, nosso país, tem a alma gravemente doente.
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O homem que não aspira à grandeza de alma é uma nulidade. Algo como um rato de campo ou uma raposa. A religião é a única esfera aberta pelo homem para definir o todo-poderoso.
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Como serão os nossos filhos? Muita coisa depende de nós. Mas deles também. É preciso que neles haja o desejo de liberdade. Isso depende de nós. Para as pessoas nascidas na escravidão, é difícil crescer fora dela. Por um lado, desejo que a próxima geração tenha encontrado pelo menos um pouco de descanso, e, por outro, a paz, que é uma coisa perigosa. É necessário apenas que não adormeçamos espiritualmente. O mais importante é ensinar às crianças a dignidade e o senso de honra.
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A literatura, como toda arte, é de essência religiosa. Na sua maior manifestação, ela dá forças, dá esperança em face do mundo moderno, que é monstruosamente cruel, chegando a tocar o absurdo. A verdadeira arte contemporânea precisa de catarse que purifique as pessoas ante os desastres (ou a catástrofe) vindouros.1
Não importa que a esperança seja um engano, mas ela dá a oportunidade de viver e amar o belo. Sem esperança não há homem. Na arte deve-se mostrar o horror em que vivem as pessoas, mas só se for encontrada uma maneira de expressar a Fé e a Esperança. Em quê? Para quê? Apesar de tudo, o homem é cheio de boa vontade e de sentimento de dignidade. Mesmo diante da morte. Com isso ele nunca trairá seu ideal, sua Fada Morgana, sua miragem, que é a sua vocação humana.
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No curso da história da civilização, a metade espiritual do homem ficou cada vez mais separada da sua parte animal, material, e agora está na escuridão do espaço infinito; mal podemos ver as luzes de um trem que parte, e é a segunda metade do nosso ser que para sempre e irremediavelmente é levada. O espírito e a carne, o sentido e a razão nunca serão capazes de se juntar novamente. É tarde demais. Ainda estamos enfermos devido a uma terrível doença, cujo nome é falta de espiritualidade, e a doença é fatal. A humanidade fez de tudo para destruir a si mesma. Inicialmente de modo moral, e a morte física é apenas o resultado disso.
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É preciso elevar-se acima da simples oportunidade de viver, tomar concretamente consciência de sua corruptibilidade, em nome do futuro, em nome da imortalidade.
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Depois da guerra, a cultura de alguma forma entrou em colapso, decaiu. No mundo inteiro. Junto com o nível espiritual. No nosso país, obviamente, isso foi, entre outras coisas, o resultado da destruição consistente e bárbara da cultura. E uma sociedade sem cultura, é claro, torna-se selvagem. Só Deus sabe ao que chegará tudo isso! Nunca antes a ignorância atingiu níveis tão monstruosos. Essa recusa ao espiritual só é capaz de produzir monstros.
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Oração pessoal: Meu Deus! Senhor e Mestre da minha vida! Deixe longe de mim o espírito da preguiça, do desânimo, do amor ao poder e das palavras vãs. Mas o espírito de castidade, paciência, humildade e amor, concedei a mim.2
Com a exceção do último trecho, todos os outros encontram-se ainda nas primeiras vinte páginas dos Diários. O conjunto dos cadernos totaliza quase 700 páginas. É um documento interessantíssimo que nos faz perceber a dimensão humana e espiritual desse artista tão admirável que foi Andrei Tarkovski.
Na série de vídeos que farei a respeito do diretor, dedicarei também alguns para falar especificamente de seus Diários e de Esculpir o tempo, seu livro de teoria cinematográfica e filosofia da arte.
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Em tempo: caso seja um leitor ou leitora que ainda não viu meus vídeos no Youtube e não se inscreveu no canal do Persona, siga este link e comece a me acompanhar por lá.
Até a próxima!
Tarkovski escreveu seus diários — e produziu seus filmes — em um contexto em que se acreditava na eminente catástrofe nuclear que levaria à extinção da humanidade. Seus últimos filmes, a partir de Stalker, tratam particularmente deste assunto.
Todos os trechos foram retirados da edição publicada pela É realizações em 2012, com tradução direta do russo feita por Alexey Lázarev.
Me soaram entre o moralista e o simplório algumas das observações de Tarkovski. Mas talvez seja aquilo que um homem "prático" como ele consegue produzir em meio à um trabalho genial. E por genial me refiro ao resultado artístico como fruto de um trabalho forçado e não de uma iluminação ou mesmo de um elitismo técnico privilegiado. No fim era talvez o exercício dessa mesma liberdade que estou pondo à prova aqui nesse comentário, escrever livremente
"Toda arte é de essência religiosa". Amo Tarkovski!