"Fogo contra fogo", de Michael Mann
revisitando um clássico do cinema contemporâneo
Com a recente publicação do romance Heat 2, Michael Mann retorna ao universo ficcional criado no filme Fogo contra fogo (Heat, 1995)1.
Eis aí um bom motivo para voltarmos ao filme e investigarmos o porquê da permanência desse universo e desses personagens na obra do cineasta.
Mann é um dos últimos sobreviventes da melhor tradição do cinema americano. Um cineasta para quem a mise-en-scène ainda é importante; um diretor que respeita a realidade do seu mundo de ficção, que escreve sequências primorosas e as executa de maneira harmônica.
Nos anos 2000, ele produziria obras-primas como Collateral e Miami Vice — ápices do seu desenvolvimento formal —, mas a sua filmografia é concisa e apresenta níveis de coerência, de excelência e de integridade que são muito raros no cinema recente.
Desde Thief, filme de 1981, o cinema de Mann já dava indícios de suas qualidades. É o caso também de Fogo contra fogo, um filme muito bem construído que, entre outros temas, trata da obsessão pela realização de um bom trabalho, da solidão do homem moderno e do grande vazio que há nas almas solitárias.
Preocupações formais
A análise de qualquer cena do filme poderia exemplificar a economia estilística de Mann e as suas qualidades formais. Mas tomemos uma cena ao acaso:
Após as primeiras sequências do filme, o personagem Neil, vivido por Robert de Niro, está chegando em sua casa (ele é um indivíduo extremamente solitário, semelhante ao Jef Costelo interpretado por Alain Delon no filme O samurai, de Jean-Pierre Melville).
Na cena em questão, ficamos conhecendo ainda mais a personalidade de Neil. Além da ambientação criar uma atmosfera de melancolia e de alienação, as composições sutis de Mann descrevem com perfeição os movimentos interiores do personagem: ele entra na casa, deposita as chaves em cima de uma pequena mesa (um dos únicos objetos que há no lugar), dirige-se à janela e encara a amplitude do mar.
Então há um corte para um plano mais fechado, no qual já não vemos mais o seu rosto, pois a mudança de foco o transformou numa mancha:
Ele se confundiu com aquela amplitude, com aquele barulho incessante da natureza que só servia para acentuar a sua solidão; sua imagem se fundiu com as cores do quadro e sua figura adquiriu um aspecto abstrato. O personagem cujas ações e cuja caracterização servem para que ele passe despercebido dentro da sociedade, que procura se camuflar — se anular — nos ambientes em que está inserido, sente o peso dessa anulação na experiência do isolamento. Em termos visuais, alguns cortes e mudanças sutis de foco foram suficientes para revelar o que se passava dentro da sua alma.
Eis um exemplo — dentre inúmeros outros possíveis — de como as escolhas artísticas do cineasta contribuem para aumentar o poder significativo da sua história.
História real
No enredo, acompanhamos o policial Vincent Hanna (Al Pacino), do departamento de homicídios da polícia de Los Angeles, e a sua perseguição ao criminoso Neil McCauley (De Niro), cujos planos e ações motivam e estruturam a narrativa do filme.
Na busca pela captura de McCauley, Hanna passa a admirá-lo, pois o modo como o bandido arquiteta e executa os seus roubos apresenta grande perícia, exige muita disciplina e comprometimento de sua parte. Nesse sentido, é como se Neil fosse um artista, alguém que dominou uma arte com perfeição e a executa com maestria.
A história de filme foi inspirada na história real de um famoso bandido capturado por um policial que lhe admirava (policial que, mais tarde, trabalharia no cinema e se tornaria amigo de Mann).
Desde a primeira vez que ouviu a história, Mann percebeu que ela serviria para a criação de um filme que iria muito além do que se convencionou chamar de thriller policial.
Em suas mãos, tal material transformou-se em um filme de proporções épicas, com personagens complexos, no qual as questões morais estão entranhadas na ação e, como vimos, em seu desenvolvimento formal.
Lobos solitários
Embora McCauley e Hanna estejam um contra o outro, há um profundo senso de reconhecimento entre eles, devido à “posição” que ocupam dentro da sociedade: enquanto as outras pessoas vivem a sua vida cotidiana, os dois são obrigados a “sujar as mãos”.
Na primeira vez em que os dois personagens se defrontam, Mann constrói uma sequência excepcional que sintetiza a relação existente entre eles.
Hanna e sua equipe estão dentro de um contêiner, vigiando o bando de Neil no local de um roubo que o grupo havia planejado:
Um dos policias bate na parede do contêiner, fazendo com que Neil, que estava escondido do lado do prédio que ele pretendia roubar, olhe para a direção de onde veio o som. Mann corta para o rosto do personagem com um plano centralizado. Sua feição é a de como se ele estivesse encarando alguém:
Depois há um corte para um primeiro plano de Vincent — também um plano centralizado, mas com a luz do lado oposto do seu rosto, para ressaltar a oposição. Vincent percebera a reação de Neil e sua expressão demonstra a frustração dos seus planos:
Sem estabelecer um contato efetivo — pois eles estão distantes um do outro —, os dois personagens estão dialogando. É uma relação estabelecida puramente pelos recursos cinematográficos.
O crítico James Slaymaker analisou essa cena de maneira brilhante:
Esse momento sintetiza o sentimento paradoxal de proximidade e de distância que conecta os dois personagens. Mann compõe e edita a sequência como se os dois personagens estivessem participando de um diálogo bem próximo, mas eles estão separados fisicamente e não conseguem ver se o seu olhar é recíproco. O filme é estruturado como um duplo estudo de personagem, pois dedica o mesmo peso narrativo às experiências de Hanna e de McCauley, na medida em que um persegue o outro. Gradativamente, vai ficando claro que esses dois homens não são necessariamente opostos, mas espelhos um do outro: os dois são motivados por uma ética que supera qualquer outro aspecto de suas vidas; os dois são afligidos por sentimentos de solidão e de alienação; os dois tentam vencer sua solidão mediante relacionamentos românticos e familiares, mas acabam sendo vítimas de uma espécie de autossabotagem.2
Nesse sentido, o policial e o criminoso estão do mesmo “lado do jogo”. Não moralmente falando, mas no que diz respeito à circunstância de suas vidas. Numa cópia toda rabiscada do roteiro, lemos a seguinte descrição (feita por Mann) da famosa cena em que Hanna convida McCauley para tomar um café:
Em uma mesa. As luzes passam por homens de negócios, famílias em período de folga, pessoas vivendo vidas normais. Pessoas que nunca usaram armas, nunca tiveram a experiência da violência física, nunca foram roubadas e nunca roubaram.
Nessa descrição das pessoas que lhes circundam, percebemos que os dois protagonistas estão separados do que seria uma “vida normal”. Mais do que isso: no diálogo, ambos deixam claro que a posição social (existencial) que exercem é a única que poderiam assumir. Os dois vivem à margem da sociedade, são “lobos solitários” que vivem segundo a ética da noite: enquanto todos dormem, eles perseguem ou são perseguidos.
Os dois lados da noite
A principal diferença entre eles é explicada nas palavras de Nate (John Voight), articulador dos crimes cometidos por Neil. Numa determinada cena, os dois amigos estão conversando e, ao se referir ao policial Hanna, Nate diz: “Esse cara pode acertar e errar, você não pode errar nenhuma vez”. Isso ocorre porque Vincent está “do lado da lei”, ou seja, essa posição ainda lhe confere uma espécie de liberdade do tipo que Neil nunca irá conhecer.
Também há entre eles uma diferença de caráter. Na cena do assalto ao banco, por exemplo, Neil atira indiscriminadamente para todos os lados, sem demonstrar nenhuma consideração pelas pessoas que estão na rua. Ou seja, a sua ética não possui nenhum princípio que esteja de acordo com valores que lhe transcendam. No fundo, ela não é uma verdadeira ética, mas um vício, pois o seu único objetivo é realizar o seu trabalho de maneira impecável (independentemente da natureza “suja” do trabalho).
Além do crime, nada pode dar sentido à sua vida. Há um vislumbre de salvação no romance que ele tem com Eady (personagem de Amy Brenneman), mas Neil abdica de sua última chance de redenção em nome de sua “filosofia” particular.
Por isso, a existência do personagem Waingro (Kevin Gage) exerce uma função narrativa essencial. Ele é uma espécie de encarnação do mal em seu sentido puro. Talvez ele nem fosse tão necessário no primeiro roubo, mas ele é necessário para que compreendamos o que a escolha pela vida criminosa implica: quando se está do lado da noite no qual Neil resolveu viver, há várias dimensões possíveis para o mal uma vez desperto. Seu desenvolvimento pode ser imprevisível e ilimitado.
Os dois protagonistas são apresentados a partir de opostos: Neil é um símbolo do calculismo, da racionalidade, da disciplina irrevogável que não lhe permite nem se envolver afetivamente com outras pessoas: a sua “arte” exige total desprendimento, uma espécie de ascetismo. É ele mesmo quem resume a sua “filosofia”: “Não se apegue a nada de que você não possa se livrar em 30 segundos se ‘a coisa sujar’ na esquina”.3 Vincent, por sua vez, é o símbolo do instinto, dos ímpetos repentinos, da emoção descontrolada.
Essa oposição é refletida nas atuações: de um lado temos De Niro com gestos meticulosos, frases curtas e raras, poucas inflexões em sua feição e um ritmo de fala modulado; do outro lado temos Al Pacino com uma gesticulação expansiva, ações exageradas, um ritmo de andar e de falar mais frenético e impulsivo.
Contudo, esse contraste não existe para afirmar ou criticar nenhuma dessas posturas. Quando consideramos o desfecho da história, percebemos que o racionalismo de Neil é vencido pela impulsividade de Hanna. É óbvio que isso não é uma “aposta” num tipo específico de personalidade, é apenas uma escolha moral que reflete uma atitude mais desprendida da parte do personagem de Al Pacino.
De certa forma, podemos dizer que Vincent aceita a anarquia do universo. Ao passo que Neil, por sua vez, sofre justamente porque não tem o controle que gostaria de ter sobre todas as circunstâncias da vida.
Síntese perfeita
O que significa dizer que Michael Mann é um dos “últimos sobreviventes da melhor tradição do cinema americano?” Significa que a forma dos seus filmes dialoga diretamente com um tipo de cinema que, após o advento dos movimentos modernos4, foi se tornando cada vez mais raro.
Há uma parcela da crítica que considera as décadas de 30, 40 e 50 do século XX como o período histórico em que a arte do cinema atingiu o seu ápice. Nos grandes filmes da Hollywood clássica, do realismo poético francês e do neorrealismo italiano, por exemplo, havia uma unidade formal que privilegiava a coerência e a organicidade do filme mais do que a retórica, o sentimentalismo ou os artifícios técnicos. Os filmes possuíam um equilíbrio no que diz respeito à percepção, ao pensamento e ao sentimento. Mesmo quando um desses aspectos era acentuado — basta pensarmos em um diretor como Hitchcock, por exemplo —, a ênfase não servia a uma retórica fácil ou a um subjetivismo egocêntrico, servia à narrativa, aos personagens, à forma total do filme.
Esse equilíbrio pode ser encontrado em quase toda a filmografia de Mann. Seus filmes são coerentes, harmônicos, todos os detalhes são pensados tendo em vista a forma completa do filme e não buscam meramente provocar um efeito ou proferir um discurso.
Poderíamos falar, por exemplo, do modo como Mann aborda a violência.
Fogo contra fogo é um filme em que há muita violência; as cenas de assassinato e de combates físicos são produzidas com o maior nível de verossimilhança possível; com efeitos especiais bem realizados, movimentos bem coreografados, etc. Mas os momentos violentos não são enfatizados de uma maneira retórica ou espetacular: não há uma estilização gratuita da violência — como na obra de Tarantino ou Nicholas Refn, por exemplo, para citar nomes do cinema recente.
A violência é mostrada porque a realidade daquele mundo é exatamente assim — e ele não poderia ser falseado. Mas essa violência irrompe de modo breve, a câmera não se demora sobre os corpos mortos. Não é uma abordagem estética da violência, mas uma abordagem necessária.
Em síntese, podemos dizer que é uma abordagem que contribui para a unidade do filme, assim como as outras escolhas artísticas de Mann também o fazem.
A geografia do drama
Para além de qualquer tema que é abordado em sua narrativa, Fogo contra fogo é um belíssimo exercício de exploração do espaço.
O roteiro é bem construído, a história em si é de grande interesse, a direção dos atores é excelente, mas as maiores qualidades do filme estão na organização do mundo ficcional, na percepção da materialidade do que nos é mostrado e na descrição concreta das experiências que se originam dentro da circunstância construída.
Há dois elementos que contribuem de modo significativo para essa organização: o cenário e a relação que os elementos da história estabelecem com ele.
Mann sempre foi um diretor preocupado com a geografia de suas histórias. Isso é evidente em Fogo contra Fogo, pois a cidade é parte crucial da mise-en-scène: as ruas; os bares e restaurantes; os hotéis; o interior dos apartamentos; o panorama dos prédios; estacionamentos; pontes; depósitos; terrenos baldios; hospitais; becos; aeroportos. Mais do que servir de cenário para a ação, a cidade de Los Angeles acaba se transformando em uma personagem da história. Apresentada pela fotografia primorosa de Dante Spinotti, ela é o elemento que mais contribui para a criação da atmosfera sombria e melancólica do filme.
Da visão macroscópica dos panoramas iluminados aos interiores das casas que funcionam como reflexos da alma dos indivíduos, os elementos concretos do cenário contribuem para que Fogo contra fogo seja um filme enraizado em sua materialidade.5
As imagens do filme são vivas: os objetos, os personagens e os elementos apresentam uma concretude que lhes confere um poder significativo que vai muito além da mera descrição ou “decoração”.
Elementos como metal, vidro, alumínio, ferro, concreto e chumbo são predominantes nesse universo ficcional onde a noite é quase absoluta e parece engolir os homens. Há pouca matéria orgânica: a natureza elementar só é enfatizada de maneira irônica. Podemos perceber isso nas cores empregadas. A cor vermelha, que serviria como um contraste ao cinza e ao azul prevalecentes, não aparece para representar a vida, mas a morte:
Em outro momento, quando Neil estava prestes a conquistar a sua liberdade, já havia sido perdoado por Eady — que vencera a repulsa inicial de ter descoberto que ele era um criminoso — e já não precisaria mais se preocupar com a perseguição de Hanna, ele está em seu carro dirigindo-se ao aeroporto:
O carro passa por dentro de um túnel e, num contraste com a paleta escura do filme, o túnel está todo iluminado. Essa ambientação funciona como um vislumbre da liberdade, mas Neil não está verdadeiramente livre. Ele quer se vingar de Waingro (que fugira e quase arquitetara a morte de Neil) e, ao saber o paradeiro desse personagem, ele toma outro rumo, adentra novamente a noite em busca de sua vingança.
Esses detalhes revelam um emprego muito inteligente dos recursos cinematográficos.
Controle da percepção, sentimentos modulados, ritmo equilibrado, consciência da materialidade. Qualidades que constroem uma obra-prima e culminam na bela cena final quando, agonizante, Neil estende a mão para que Hanna se compadeça dele antes da morte. Novamente, a geografia é importante: eles estão em um terreno isolado do aeroporto, espaço que reafirma sua condição marginal.
Se até então eles eram o espelho um do outro, agora o contraste entre os dois tornou-se mais nítido: um está em pé, o outro está deitado; um está intacto, o outro está com o corpo cheio de projéteis; um permanece vivo, enquanto o outro terminou de se confundir com a noite.
Gostou do texto? Compartilhe com um amigo e faça com o que o nosso trabalho chegue a mais pessoas.
Há rumores de que o diretor, que acabou de produzir uma cinebiografia do empresário Enzo Ferrari, transformará o romance em um filme.
A frase original de Neil diz “if you feel the heat around the corner”. Ela é uma frase importante porque sintetiza a sua filosofia. É daí que vem o título do filme. Infelizmente, uma tradução literal não faria sentido algum e soluções próximas como “se a coisa sujar na esquina”, embora reproduzam o sentido almejado, fazem com que a metáfora central se perca.
Quando digo “cinema moderno” estou me referindo às seguintes expressões: New waves europeias, Nova Hollywood americana, “cinemas novos” da América Latina, e tudo o que veio depois disso: maneirismos dos anos 80, cinema “publicitário”, cinema dù look, dogma 95, etc.
Nesse sentido, o perfeccionismo da direção de arte serve a um propósito bem determinado. Mann não constrói um mundo para ignorá-lo, mas para explorá-lo de modo consciente.
Bela análise !