O final surpresa de Alfred Hitchcock
como foram os últimos dias de vida do mestre do suspense
Há alguns dias, enquanto eu fazia uma pesquisa na internet, encontrei uma bela história que eu ainda não conhecia: a narrativa dos últimos dias de vida de Alfred Hitchcock.
O que há de tão especial nessa narrativa? Tirando o fato de ela estar relacionada a Hitchcock, que é um dos maiores cineastas da história, a sua beleza está na busca por uma maturidade espiritual que, no fim das contas, é a aspiração máxima que alguém pode ter na vida.
É uma história tão bonita que decidi traduzir o texto integralmente. É um artigo escrito pelo padre jesuíta e professor universitário Mark Henninger, que acompanhou Hitchcock em seus últimos dias. O texto original foi publicado no Wall Street Journal, no dia 6 de dezembro de 2012. Eis a tradução:
O final surpresa de Alfred Hitchcock
Quando eu era criança, eu assistia ao programa Alfred Hitchcock Apresenta e, já no início da transmissão, ficava fascinado pela simples caricatura de nove traços do perfil arredondado do famoso diretor. A música tema estabelecia o clima do programa enquanto a silhueta de Hitchcock aparecia do lado direito da tela e depois caminhava para o centro, substituindo a caricatura. “Boa noite”, ele dizia. E então seguiam-se as suas falas irônicas, tão diferentes de qualquer coisa que pudéssemos encontrar na televisão.
Fui novamente acometido por essas emoções da infância quando, em 1980, entrei na casa de Hitchcock, em Bel Air, e o vi cochilando em uma cadeira, num canto da sala de estar, vestido com seus pijamas pretos.
Na época, eu estava fazendo pós-graduação em filosofia na UCLA e era (e ainda sou) um padre jesuíta. Certa quinta-feira, Tom Sullivan, um de meus colegas padres, disse que conhecia Hitchcock e que iria ouvir sua confissão. Ele também me perguntou se eu poderia acompanhá-lo até a casa de Hitchcock para celebrar uma missa no sábado à tarde.
Fiquei atordoado, mas é claro que aceitei. Naquele sábado, quando encontramos Hitchcock adormecido na sala de estar, Tom o acordou de modo gentil. Hitchcock despertou, olhou para cima e beijou a mão de Tom, em agradecimento.
Tom disse: “Hitch, este é Mark Henninger, um jovem padre de Cleveland”.
“Cleveland?”, disse Hitchcock. “Vergonhoso!”
Depois de conversarmos por um tempo, passamos da sala de estar para o escritório de Hitchcock, e lá, com sua esposa Alma, celebramos uma missa tranquila. Em frente a mim estavam os volumes encadernados de seus roteiros, Os Pássaros, Psicose, Intriga Internacional e outros — uma grande distração.
Hitchcock esteve afastado da igreja por um tempo, e ele respondia à missa em latim, à moda antiga. Mas a visão mais notável de todas foi que, depois de receber a comunhão, ele chorou silenciosamente, com as lágrimas escorrendo por suas bochechas enormes.
Acompanhado de Tom, voltei várias vezes à casa de Hitchcock, sempre nas tardes de sábado, mas lembro-me de ter ido sozinho uma vez. Sou um pouco tímido com pessoas famosas e achei um pouco estranho papear com Alfred Hitchcock, mas conversamos de forma agradável em sua sala de estar. Então, em certo momento, ele disse: "Vamos à Missa".
Ele estava com 81 anos e tinha muita dificuldade para se mover, então o ajudei a se levantar e o acompanhei pela passagem que levava da sala ao escritório. Enquanto caminhávamos lentamente, senti que precisava dizer algo para quebrar o silêncio, e o melhor que pude pensar foi: "Bem, Sr. Hitchcock, você viu algum bom filme recente?" Ele parou e disse de modo enfático: "Não, não vi. Quando eu fazia filmes, eles falavam de pessoas, não de robôs. Robôs são entediantes. Vamos lá, vamos à missa." Ele morreu logo após essas visitas, e sua Missa fúnebre foi na Igreja do Bom Pastor, em Beverly Hills.
Algo intensamente pessoal
Uma nova produção de Hollywood1 com um retrato aparentemente desfavorável de Hitchcock fez com que ele retornasse às notícias. Alguns de seus biógrafos também não foram gentis com o diretor. Algo parecido acontece com a religião: ela também é apresentada de modo desfavorável nas notícias, pois muitas vezes está envolvida com conflitos de interesse e com o terrorismo. Esse tipo de violência faz com que as pessoas rejeitem a religião de modo categórico. Bem, se a única experiência que se tem da religião é esta — uma experiência de segunda mão, mediada pelas notícias — a reação é até compreensível.
O que as notícias não dizem é que a religião é algo intensamente pessoal. Santo Agostinho escreveu: Magnum mysterium mihi (“Sou um grande mistério para mim mesmo”). Nunca saberemos por que Hitchcock pediu para que Tom Sullivan o visitasse, mas ele mesmo com certeza sabia. Algo sussurrou em seu coração, e as nossas visitas responderam a um profundo desejo humano, uma necessidade humana real. Quem de nós não sente tais desejos e necessidades?
Algumas pessoas suspeitam dessas conversões2 no final da vida, pensam que elas são um sinal de fraqueza ou de “insanidade”. Mas a morte concentra o nosso pensamento mais do que qualquer outra coisa. Há uma longa tradição de pensamento sobre a morte que remonta à antiguidade do memento mori, “lembras-te da morte”. Por quê? Penso que, ao enfrentar a morte, o indivíduo finalmente passa a ver as coisas de modo mais sóbrio. Com maior ou menor clareza, ele se depara com verdades que há anos estavam perdidas, mas que agora ele considera dignas de atenção.
Sob essa perspectiva, penso que não há nada mais humano do que avaliar a própria vida, com toda a sua parcela de feridas sofridas e infligidas, e buscar a reconciliação com um Deus profundamente sábio e misericordioso. A extraordinária reação de Hitchcock ao receber a comunhão revela a verdadeira face da religião e da humanidade, longe das manchetes, dos cineastas e dos biógrafos atuais.
Donald Spoto, um dos mais famosos biógrafos do cineasta, escreveu que Hitchcock deixava bem claro que “rejeitava qualquer insinuação de que havia permitido a visita de padres ou a celebração de missas em sua casa”. Mas essa não era a verdade, pois eu estava lá.3 O fato de que, em seus últimos dias, o diretor tenha levado os estranhos a acreditarem precisamente no oposto do que aconteceu é “puro Hitchcock”.
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“Late-in-life turns to religion”, no original. A princípio, “conversão” não seria uma boa solução, pois pode dar a ideia de uma primeira aproximação à religião, o que não é o caso de Hitchcock (que, a título de curiosidade, só se casou com a sua esposa Alma, por exemplo, depois de tê-la “obrigado” a concluir a catequese e a crisma para que eles pudessem ter um casamento dentro da Igreja Católica). No entanto, durante a sua vida, um indivíduo pode passar por várias conversões. Por isso pensei que o termo se aplica nesse trecho.
Esse período “Mas essa não era verdade, pois eu estava lá” não está integrado no texto original. Ele aparece na página do WSJ como subtítulo. Pensei que fazia sentido colocá-lo neste parágrafo.
Que texto bonito, meu caro.
A iminência da morte faz as pessoas se lembrarem do que realmente importa.